Não quero ser John Malkovich. Quero ser Pedro Almodovar. Sou sua fã desde Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, mas nunca consegui explicar o que me seduz em seus filmes. Várias vezes tentei verbalizar o que tanto me atraiu em Ata-me, Carne Trêmula, Tudo sobre minha Mãe e Fale com Ela, mas sempre achei difícil traduzir em palavras o fascínio que estas obras me provocam. Até que, em vez de assistir a Pedro Almodovar, resolvi ler Pedro Almodovar. De repente, entendi a razão do meu bloqueio.
O livro, chamado Fogo nas Entranhas, foi escrito por ele em 1981, quando estava encerrando sua carreira de diretor de filmes pornôs. É uma novelinha rápida. Tão rápida quanto absurda. Não faz o menor sentido. Rápida, absurda, sem sentido... Quero me chamar Carmencita se eu não acabo de descrever a vida.
Almodovar é puro nonsense, e isso é encantador, é um alento nesse mundo onde tudo tem que ser ordenado, catalogado, explicado. Teorizar sobre Almodovar é um desperdício de tempo. Ele está além dos rótulos de brega ou chique, comédia ou drama, arte ou embromação. Sentimentos não têm estilo definido. São ilógicos por natureza.
Por que não podemos dizer "te amo" para um cara que conhecemos há cinco minutos? Por que não podemos nos tornar a melhor amiga de uma estranha? Qual o problema em combinar verde com roxo? E de transarmos com um denlinquente, se ele for a cara do Antonio Banderas?
A gente procura o sentido da vida em tudo: nos livros, na religião, nos índices da Nasdaq. A gente quer um porquê. Almodovar vem e diz: não tem porquê. Ou melhor, não tem só um. A vida é uma salada de emoções, piadas, lágrimas, sexo, pileques, encontros em elevadores, desencontros em aeroportos. A vida não é tão arrumadinha quanto a gente gostaria: é um caleidoscópio. Colorida. Disparatada. Engraçada. Trágica. Inquieta. Indecente. A vida é latina.
O livro, em si, não é lá grande coisa. Uma bobajada, pra falar a verdade. Mas não é a história que interessa. É o exercício de criação, a movimentação dos personagens, a recusa em estabelecer parâmetros de comportamento. À medida que a leitura avança, a gente vai ficando cada vez mais liberado pra rir e pra admitir que as coisas podem ter coerência, mesmo prescindindo de uma interpretação.
Vale para a música, para as artes plásticas, para o teatro: não é preciso dominar teoria para se entusiasmar, não é preciso entender com o cérebro, pode-se - e deve-se - entender com o espírito. Finalmente caiu a ficha: eu gosto de Pedro Almodovar por instinto.
imagem . Todo sobre mi madre, de Pedro Almodovar, Espanha, 1999
texto . Alguma Coisa, Martha Medeiros, Revista OutraCoisa, Junho / 2004