"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

20.8.06

sonhos

As imagens que Kurosawa filmou são pinturas em movimento. Inundando os olhos que observam maravilhados a tela antes em branco. Extrema beleza, leveza que vem do oriente com muita profundidade. O que espera o menino depois do arco-íris? Perigo que se descortinará. O território desconhecido atrai porque nele coisas inesperadas se revelam e coisas convencionais tornam-se extraordinárias se expondo por um ângulo antes nunca percebido. O arco-íris é um portal entre a realidade de estar acordado e a realidade de estar sonhando. O que acontece a quem se aventurar a ultrapassar o marco proibido? Dor e terror? Sim. Mas também sabedoria. A sabedoria que se adquire através das intempéries e dos contratempos. A dor vista não como penitência, castigo, punição ou fardo a ser carregado, mas sim como parte integrante deste caminho pelo qual precisa-se passar. A dor como uma flor no meio de tantas outras. Flores que ainda não se abriram, flores abertas em plenitude, flores murchas. E as flores que virão - ainda não nasceram. Encantadora é a dança da natureza a entregar os frutos maduros para que a humanidade se deslumbre e se sacie. Sincronidade ímpar, harmonia múltipla. É preciso que esta mesma humanidade se reconheça como parte da natureza se mostrando grata, preservando. Algo tão simples que a cultura oriental assimilou tão bem há tanto tempo - cultivar as coisas boas, deixar as ruins de lado... mas não sem antes conhecê-las bem. Algo tão simples que o povo ocidental, com sua avidez de progresso, ideologias, contra-ideologias, máquinas, bombas nucleares e fumaça (muita fumaça!) não faz questão de enxergar. Sonhos de guerra são pesadelos saídos de um escuro túnel (outro portal), marchando tenebrosamente e cobrando uma ordem a ser obedecida - como não sabem viver sem o governo de um superior, continuam esperando que alguém lhes aponte o que precisa ser feito sem perceberem que o tempo não é mais disso. "A guerra já passou. Vocês já passaram. Volver!" Outroas pesadelos de gelo. Uma situação tensa: discutir pelo destino do grupo, para que esse grupo não se extinga por completo, porque perdido ele já está. Esperando uma salvação que pode vir mais fácil do que a esperança. É simples agora mas pode chegar o momento em que será tarde demais.

Enquanto isto, o barulho que o moinho faz contra a água vai nos tranquilizando. Um senhor de quase um século faz o exercício das pequenas coisas à beira do rio. O que ele tem a dizer é muito maior que toda essa parafernália modernosa alardeando novidades mercadológicas, econômicas, sistemáticas. O que este velhinho diz não é secular, o que ele diz é milenar - vem muito antes dessa civilização cinza em que vivemos. Escuta...

Kurosawa convidou Martin Scorcesse para interpretar Van Gogh, e recriou as pinturas deste último com uma fidelidade assombrosa. Juntando sonhos coloridos à sonhos desbotados, manifestou com delicadeza e severidade a sua opinião sobre o passado, o presente e o futuro de seus espectadores. Conseguiu criar fábulas contundentes reunidas neste filme ilimitadamente lindo e eterno - enquanto puder ser visto.

imagens . Akira Kurosawa's Dreams, Japão, 1990

texto . matheus só

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9.8.06

os sonhadores

Sonhar acordado é uma loucura tomando conta da alma duma pessoa de tal forma que essa pessoa não consegue ao menos fingir não sonhar. Os sonhos vão surgindo e desfilando diante dos olhos como a grossa e azulada fumaça sobe pelo ar. Quem prefere conversar iluminado pelas chamas de velas? Quem não gosta de televisão e só assiste à filmes quando vai ao cinema? Olhos fixos na superfície colorida da tela de projeção - no mínimo duas cores. O breu da sala à luz de velas. O breu da sala à luz da tela. Coisas pouco convencionais acontecem em ambientes de iluminação irregular. Sonhos bons, sonhos maus. Com intensidade. Os olhos cheios de brilho do sonhador param perdidos a olhar os sonhos se criando, se formando na perplexidade mágica do devaneio. O sonhador é meio aéreo, fora do ar. Para o sonhador o sonho basta e sua realização não é tão bela como quando o sonho só morava dentro da mente. Não há correntes que prendam quem sonha. Quando o algoz sorri tranquilo por pensar tê-lo capturado, no sonhador se desvencilha num reles truque infantil de ilusão óptica - porque as correntes dos leigos não conseguem manter cativos os pensamentos sonambulando. O que é desvairado num sonhador é o desejo, bicho bruto e sem rédea - pulsando vermelho. O que passar pela cabeça tem antes de ter batido no coração. A inquietude de contrariar o estabelecido adormecido: o calculável - a sobriedade, a moral e o interdito: dito entre linhas. Sonhadores podem se alienados mas não são tranquilos. São inquietos. A revolução? A revolução está acontecendo lá fora - mas, enquanto dormimos depois do gozo lascivo, alguma pedra pode atingir nossa paz até então perfeita e quebrar nossa janela, certo? Non, rien de rien. Non, je ne regrette rien. E o preço da interrupção deste sono de rogozijo pode ser a integração total à Causa. Os corpos se entregando ao fogo e aos gritos ao ar livre. Este sacrifício teria sido provocado por alguma sala escura? Quem vai saber... Catar os sonhos no ar até lá. Inclusive sonhos alheios que os outros não têm a coragem de sonhar. Não têm a coragem sequer de admitir. É por esse motivo que nem se lembram dos próprios sonhos - aos não-sonhadores (os esquecidos) só resta o gosto mau na boca quando acordam. E ainda zombam dos que têm coragem de sonhar e de contar seus sonhos estranhos. Estranhos? Não existem sonhos estranhos mas sim existem pessoas estranhas que não sonham. Muito perigoso e muito bonito é quando um sonhador tromba com outros sonhadores e, juntos entre si e isolados do resto do mundo, confabulam um exclusivo intercâmbio de beleza. texto . matheus só aos sonhadores em geral, espectadores dos sonhos que criaram ou simplesmente dos sonhos que acham belos.

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