"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

14.8.07

Beijo do Inverno OU Canção Pra Você Viver Mais

para meus amigos intergalácticos
"Mal posso imaginar
que não há mais ninguém
que vá ficar
em seu lugar.
Me diz qual a razão
pra eu não ir também
Me diga já
onde ele está."
(Me Explica)
Porque esta canção só faz sentido se você acreditar nela. Porque esta canção só faz sentido pra quem já perdeu alguém que muito amou. Perdeu pra sempre, irremediavelmente. A gente é pra sempre no coração das pessoas que amamos. A gente é pra sempre enquanto houver tempo, enquanto houver amor.
Quem nunca pensou em fugir para bem longe? Repentinamente. Sem avisar. Pequenos avisos, no entanto, sempre ocorrem. Pistas. Delicadas despedidas. E ir andando por estas estradas tortuosas e infinitamente belas as quais todos os que vivem estão sujeitos. Mergulhar e talvez não voltar à tona. Ou voltar, inesperadamente, sem saber ao certo de que forma.
É um mistério porque tem que ser um mistério. E pra que tentar definí-lo com palavras? Melhor render-se. Deixar-se encantar por esta forma de vida transparente.
Andar andar andar. Alma a vagar por lugares bonitos e por lugares escuros: grandiosos, sempre. Lugares onde o espaço não pode ser medido. Por lá entende-se que o Deus somos nós e o espaço ao nosso redor.
É sempre inesperado para quem fica. Um susto. Ontem um corpo vivo em movimento ao qual se podia agredir e irritar. Hoje repousa encaixotado entre as flores. Caule que acabou de ser arrancado. Parece que dorme. E dorme. Só que não respira. Não vai mais acordar.
E quem ficou chorou porque sentiu falta. Pede-se uma volta mas sabe-se que é impossível. Tenta-se encontrar uma explicação mas não há. E se houver, melhor não tentar descobrí-la. Não se culpar. Ninguém é culpado. Todos somos culpados. Somos. O mundo nunca é como se sonha. Mas é preciso continuar sonhando e tentar inventar algo menos cinza do que toda essa porcaria que está espalhada por aí. É preciso sonhar com algo mais rosa e mais verde.
Não é por mal que alguém vai embora. O tempo todo procura-se uma liberdade. Pura utopia. Sabe-se que é impossível ser absolutamente livre. O amor nos prende o tempo inteiro, temos um corpo de carne e osso. Quem não ama está morto, mesmo com um corpo vivo. Quem ama está vivo. Quem é amado está vivo. Para sempre. Eternidade que se distribui aos outros.
E os amigos continuam suas vidas, às vezes dando prosseguimento à ideais dos que se foram. É importante nunca desprezar os presentes que nos são dados pelo acaso. "Baby, a gente 'inda nem começou." (Raul Seixas)
"Mas não faz mal, depois que a chuva cair, outro jardim um dia há de reflorir." (Roberto Carlos) Os livros que não puderam ser lidos por falta de tempo serão degustados por outros olhos. Os filmes já estão sendo exibidos. Alguém quer ver? Pode vir. Pode vir. Os discos empoeirados estão sendo lavados e restaurados para que a magia não se perca. Os livros que precisam ser escritos estão sendo escritos. Os escritores que querem ser lidos não apenas na tela mas também nos livros serão publicados algum dia. Os escritores que querem ser ouvidos deverão perder o medo de se apresentar em público.
A canção exige beleza.
A morte deve ser agridoce. Num pequeno instante, que é o último, a pessoa arrepende-se mas aí já é tarde demais. Alguns não se arrependem. Virginia Woolf, mesmo sendo excelente nadadora, deixou-se levar pela correnteza. As pedras que ela carregou para fazer peso e imergir estão lá no fundo até hoje.
A coisa mais importante é o respeito à pessoa. Ninguém tem o direito de julgar nada. Ninguém pode ter a prepotência de dizer que este ou aquele vai queimar eternamente no fogo do inferno porque fez isto ou aquilo. Cada homem e cada mulher têm o direito de fazer o que quiser. Inclusive viver. Inclusive morrer. Dizendo isto, não quero estimular ninguém a nada. Apenas estou querendo que os cretinos e os cristãos saibam do meu ponto de vista. É revoltante a situação pela qual passam quase todos os que tiveram amigos ou familiares suicidas e foram obrigados à ouvir inúmeras vezes: Deus não aprova isto. "Deus está no sinal vendendo chicletes." (John Ulhoa)
Ninguém pode condenar o ato porque não há ser humano adulto que não tenha pensado em se matar. Ninguém tem uma luz de vida tão forte dentro de si que esta nunca tenha, ainda que num átimo de segundo, se apagado. Depois ela reacende e deixa-se a idéia de lado. Mas aconteceu. Mesmo que não se admita para não blasfemar contra o Deus.
Por aqui e por lá lembranças boas das coisas boas que aconteceram. As coisas boas é o que sobra no fim das contas. É preciso esquecer tudo que for ruim, tudo que for maldade. Já passou. É preciso lembrar dos amores e dos amigos mais queridos, dos longos passeios feitos sem planejamento, das grandes histórias que nunca têm fim, dos poemas inacabados - os versos que foram escritos ainda estão lá. É preciso, sobretudo, gargalhar. Não perder tempo com discussões e rivalidades. Não tentar ficar impondo nada a ninguém. Se for para impôr algo, que seja a arte, que esta é soberana e primordial.
O amor sempre esteve lá. O amor sempre estará lá. Amor pode ser loucura e, às vezes, até morte. É preciso aprender a conviver com isto. É preciso encarar os fatos de frente. Como diria uma outra bonita canção: a tudo a gente se habitua.
Outras canções... Sempre muitas canções em nossas vidas. Mas esta sempre será absolutamente essencial, porque foi feita para se ouvir lembrando de uma pessoa que não podemos mais ver e vive e se manifesta no canto mais nobre do coração de uma pessoa. Vive sim, vive sempre dentro dos corações das pessoas que se amaram e que se amam. Não é preciso extinguir este amor. É preciso pensar com carinho ao invés de pensar com tristeza.
O amor. Ah... o amor explode aos litros. O amor ora escorre para entregar vida, ora escorre para entregar morte. Como querer voar - pular do alto de um prédio. É preciso, sempre, encarar as coisas de frente.
E cada pessoa que ouvir a canção vai se lembrar de uma pessoa diferente, ou da mesma pessoa de forma diferente. E quem cantar a canção sempre terá nobreza, sempre incorporará a serenidade necessária, embora, às vezes, a emoção seja tamanha que a voz desafine um pouco na tentativa inútil de esconder o pranto e não deixar as lágrimas escorrerem livres pelo rosto.
A leveza das coisas. A beleza das coisas. É para isto que se vive. A primavera vem chegando e as flores têm que florescer - não foram criadas para outra coisa senão florescer. Quanto a nós, humanos, é para isto que se deve viver: cumprir o trabalho para o qual fomos criados. Viver. Viver mais. Mais. Viver. Porque a canção exige.
texto . Matheus Matheus
imagem . Vinterkyss, de Sara Johnsen, Noruega, 2005

10.8.07

beijos para todos

Um segundo o meu no teu por um segundo mais feliz; por quase um segundo. Eu sou o beijo da boca do lixo na boca do luxo. Eu sou o beijo da boca do luxo na boca do lixo. O beijo é quando uma boca quente se cola a outra boca quente, morna ou fria: os lábios se encostam e se empurram desesperados e fundidos. A língua se mete na boca desconhecida e o de sempre (sempre diferente) é descoberto: outra língua, o gosto da saliva, dentes e o céu. Céu da boca. Morde-se o lábio, instinto primitivo brotando líquido: está sangrado o doce vampiro, herói vencido dos espasmos delirantes.
imagem . Besos para todos, de Jaime Chavárri, Espanha, 2000
texto . O Beijo, de matheus só com citações de Cazuza, Waly Salomão e Rita Lee

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