"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

31.10.06

billy elliot

1, 2, 3... 1, 2, 3... As coisas mudam. Sempre mudam: “o novo sempre vem.”. Destruindo ou construindo. Pela força bruta ou pela força lírica. A juventude dói. E dança num ritmo de incontrolável e frenética avidez. Quanto vale um sonho? Quanto pesa a arte sobre os ombros do artista? Pesa mais se ele for pobre e precisar estar leve para exercer sua arte. Pesa mais ainda para sua família que sofre acompanhando os esforços e as ânsias e as náuseas do artista. Chega um ponto em que a arte ocupa a pessoa: anda-se dançando, fala-se escrevendo, alpendre vira palco, parede vira tela de projeção, quando se contempla uma paisagem admirável não se consegue deixar de comentar: isto daria um belo quadro... E pouco importa a conta bancária se o talento for verdadeiro. Aliás, o dom. O dom, muito mais que o talento. Quem porta o dom tem um jeito peculiar que pode passar batido aos olhos normais, mas que é evidente aos outros olhos que contemplam minuciosamente o mundo porque aprenderam antes a percebe-lo com cuidado através da arte. Pode ser uma delicadeza estranha (que nada tem a ver com viadagem ou frescura), pode ser uma corcunda saliente, ou olheiras, ou a fala embargada, ou o brilho nos olhos enquanto se fala de uma obra muito querida...

“Um artista nunca é pobre.” Ele é justamente o mais rico porque distribui a riqueza-mor: que não pode ser contada, apenas vai sendo acumulada desordenadamente dentro da memória do coração e da memória do espírito. Carinho com os mais velhos que nos entregam resquícios de um mundo que não vivemos nem viveremos mas sempre será belo ouvir e absorver um pouco de quem tem muito a passar. Enquanto uns usam madeira de piano para alimentar a lareira, outros constroem bonecos de neve. O fogo derrete a neve, mas se não se encontrarem, qual permanece mais tempo? Crianças que sabem demais muito cedo. Talvez um esclarecimento qualquer –clarão... luz!- impeça que se tornem desajustados, salvação para o mundo turbulento e caótico dos adultos. Preconceitos, contas a pagar... Apagar – não pense em nada disso nesta hora e meia de espetáculo. Mergulhe a visão na apresentação. Depois tudo o que vier virá com mais encantamento, mesmo que for pesado. Tudo passa mas a arte permanece quando passada adiante. Recebam o seu quinhão. Todos temos direito. Respire e alongue. Levante, respire. Alongue. Alongue e respire. Transformar a violência que cada um de nós traz dentro de si em beleza difícil – a beleza fácil não interessa. É na dor da carne que se exorbita o espírito. Ao infinito. Filtrar o peso até vertê-lo em leveza. Expressão. Expressar tristeza, expressar alegria. Pelo corpo todo. Incluindo o rosto. Expressão. Para exorcizar esses traumas passados. Para não deixar que a rotina nos deprima ou nos emburreça. E ser mais forte para suportar despedidas – as pessoas sempre se vão, algumas sem falar nada, madrugada adentro a se esconder: a fuga. “Ser mais forte que” si mesmo para “suportar a vaziez”. Obter serenidade através da solidão. Todo mundo é muito sozinho. Mas, assim como o crente está com Deus, o artista tem a Arte. E o público mais adiante. Mas por enquanto é trocar as luvas de boxe pelas sapatilhas. Só o treino. A preparação. Concentração. Repetir até acertar. Respirar. Vencer nem que seja pela raiva, pela insistência, de birra... Vamos desemburrecer!!! Vamos desemburrar!!! Olhe-se no espelho. Em frente ao espelho para não errar. A arte – o espelho. Respirar o ar do cais para espairecer. Meditar – transcender. A arte é repleta de belos fantasmas que são passados adiante por gerações e gerações, como lendas. A esses fantasmas empresta o corpo quem dança. Por beleza. Por tradição. A dança é a festa de raiva ou embevecimento do corpo. Praticar. Praticar. Improvisar. Jamais abaixar a cabeça a menos que o passo exija. Sem concessões à modernidade. London calling. London calling. Gastar-se inteiro pela fúria: sapatear ao som do punk rock. A arte é superior às revoluções embora possa apóia-las eventualmente. Mas não tem nenhuma obrigação. O manifesto da arte também é vermelho – mas é o vermelho da paixão, não de bandeiras... Melar o jogo de futebol dos outros: chutar a bola para longe, para o alto – para que parem de olhar para o chão e avistem o céu & o mar: o horizonte. Resistir. Persistir. Dar o melhor de si mesmo sem esperar o aplauso ou a vaia. O que vier, virá. Fazer o possível para ser merecedor do aplauso, ou pelo menos do silêncio que é de respeito à obra e ao artista. Sobretudo triunfar sobre si mesmo, sem dar atenção aos leigos. Para que os leigos um dia talvez possam deixar de serem leigos. A beleza maior, de qualquer forma, é sempre desfrutada por quem entrega a arte. E é tão intensa, tão radiante que também é um grande cansaço. A plenitude de um primeiro beijo roubado. A tensão de esperar um primeiro teste. Não deixar que o nervosismo de estar diante da pompa e da estirpe atrapalhe o desempenho. A esperança meio desacreditada de esperar o resultado. E receber o resultado e ficar perplexo ao conhecê-lo: em estado de choque, sem reação, sem palavras. Ah... violência glamourosa que vem de dentro. Essa violência só os mais intensos sabem controla-la, transforma-la numa coisa realmente bela. É uma violência que não requer sangue, nem grito. É mais uma inquietude de alma. Um inconformismo. Uma vontade de queimar, queimar, queimar. Esgotar-se num gesto. Desaparecer para o mundo comum. E adentrar noutro mundo menos mortal, mais deslumbrante. Dançar é como eletricidade. Eletricidade. Texto.Matheus Só com citações (entre aspas) de Velha Roupa Colorida, de Antonio Carlos Belchior, A Festa de Babette de Gabriel Axel, pedaço de frase de Clarice Lispector e verso de Wally Salomão

Imagem.Billy Elliot (de Stephen Daldry)

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11.10.06

voando para casa

Antes de nacer é preciso calor & paz para que a vida se forme tranquila. Depois amor & paciência para acompanhar ao mesmo tempo o ritmo de aprendizagem de cada um dos filhotinhos, sem se irritar ou dar mais atenção a um que ao outro. Ensinar. Repetir. Ensinar. Sem desistir. Ensinar. A juventude é rebelde porque tem pressa em conhecer o mundo, tem pressa para transformar o que, acha, precisa ser mudado. Divertir-se durante o processo é indispensável. Múltiplo intercâmbio, a aprendizagem é recíproca. Ensinando aprende-se, nem que seja aprender a beleza de ver a cria dar certo sem necessariamente estar fazendo o que se sonhou para ela ou para si próprio. Para fazê-los voar é essencial deixá-los voar. Quando estiverem maduros só eles próprios saberão o momento porque ninguém, nem mesmo os pais, pode estar dentro deles mesmos para saber. Quando estiverem prontos é de se respeitar o vôo dos filhotes, mesmo que este vôo pareça vacilante - de tão novo e inexperiente. O primeiro vôo é o mais lindo. Todo vôo é único. Os filhotes jamais deixarão de ser aquelas pequeninas e meigas criaturas aos olhos de quem as criou, de quem as viu crescer. Mas não mais seguirão cegamente e de boa vontade os passos do professor. Darão seus próprios passos, alçarão vôos inéditos para, quem sabe, depois retornarem felizes e exaustos "indo de volta pra casa". texto . matheus só imagem . Fly Away Home (de Carroll Ballard, EUA, 1996)

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10.10.06

ladrões de bicicleta

I Meu filho, eu sempre estarei ao teu lado. Junto de ti, sorrindo ou chorando, contemplando teu riso, escutando teu choro. Sempre ao teu lado. A minha mão maior e áspera de adulto unida a tua mão pequena e macia de criança. O mais importante é acreditar na Beleza. O mundo tem muito de belo, de extremamente belo, que de tão grandiosas estas maravilhas às vezes até nos horrorizam um pouco. Para encontrá-las é só não dar muita atenção ao que não der êxtase à vista. E estar atento à metamorfose inerente à própria condição de viver: tudo o que está vivo muda. Algumas coisas à primeira vista se apresentam a nós como horríveis, amedrontadoras, tenebrosas... mas depois se revelam preciosas e, quem sabe, pode até ser que se tornem belas diante dos olhos mais atentos aos milagres minuciosos. Agora é como se você estivesse no alto de uma longa escada e eu estivesse no início dela. Deverei então subir esta escada para alcança-lo. Subirei quantos degraus forem necessários para estar ao teu lado lhe ajudando a descer a escada degrau a degrau, e depois lhe ensinando a subí-la. Amparar-lhe com minhas mãos quando seus passos vacilarem e o risco da queda for iminente. Até que você consiga andar sem precisar de vigília constante e eu possa me orgulhar dos seus passos, que jamais deixarão de ser a continuidade dos meus passos. Importante é não deixar que uma eventual vasta tristeza invada o espaço das pequenas alegrias. É justamente por ser raro o banquete da felicidade que devemos degusta-lo ao máximo – mesmo que seja um banquete modesto.Meu filho, não se esqueça então: eu sempre estarei ao teu lado. Mesmo que eu não esteja presente fisicamente, estarei em pensamento. Mesmo que eu vá para longe, mesmo que eu morra e não exista vida após a morte. Sempre estarei ao teu lado –e você também junto a mim como um pedaço de mim. Sempre.
II Enfrentar as filas imensas da concorrência. Avesso aos azares dessa vida devastada por uma batalha vã – toda a guerra é vã. Quando a Grande Guerra termina as pequenas guerras continuam: juros e mais juros... Taxas abusivas nas costas de quem não tem quase nada e vai barganhando o pouco que tem em troca do estritamente necessário: um instrumento de trabalho. E se este instrumento de trabalho for furtado no primeiro dia de admissão? O que resta ao infeliz do trabalhador? Correr atrás do prejuízo. Fazer a denúncia aos polícias não vale de nada. Num tempo de mais miseráveis do que empregados facilmente surgem ladrões. São tantos roubos, mais roubos até do que aquisições. E tamanha burocracia... As subvenções não servem de nada para quem não tem algo para oferecer. Sabe como é: uma propinazinha... Procurar então por conta própria. O sonho desmontado. Todas as peças parecem iguais umas as outras. Mas havia um código que particularizava as peças – mas o código foi transformado ou raspado – subvertido. Olhos inocentes já com fundas olheiras. Meu filho não se lembra da guerra, a não ser por parcos flashbacks do terror que os adultos sentiram e do barulho (que numa guerra é onipresente), como quem tem um pesadelo e depois o esquece – mas sabe que teve o pesadelo. Mas o bambino pode ver as ruínas. Ainda é pequeno mas já experimenta essa indecisão desesperada de tempos difíceis: ninguém entende nada direito, tão injustos e absurdos os fatos se apresentam. Antes tudo era mais bonito e tinha mais cor. Agora são sobras e cinzas, sombras cinza que os que conseguiram sobreviver absorvem – gratos, até, pois é a única coisa que lhes resta. E para quê uma guerra? Para quê? Por dinheiro? Por poder? Para que uma Nação triunfe sobre a outra? Não. Nada disso. Uma guerra é para os poderosos se divertirem com a desgraça do proletariado como um moleque que mal saiu das fraldas se diverte jogando água ou tocando fogo num formigueiro. E se o ladrão aparecer. “Cumprimentem o ladrão. Cumprimentem o ladrão. Mas eu não. Mas eu não.” E se o ladrão for mais que um ladrão – se não passar de mais um pobre coitado que passou por tudo aquilo pelo qual você agora está passando e cansou-se de dar com a cara na parede, de lhe fecharem a porta na cara, de dar murro em ponta de faca... e passou para o outro lado: a margem, o marginal. O que fazer então? Perdoar o ladrão? Tornar-se um ladrão? Roubar, mas não pelo prazer de roubar como pregava Jean Genet, mas por pura falta de outra opção, por necessidade. Ou insistir na honestidade para continuar levando surra e ser acusado de calúnia? Um pobre desgraçado a mais que vai por estes caminhos tortuosos. Enfrentando o perigo constante de render-se e afogar-se. Mas não. Nadar. Nadar. Afinal, é preciso pensar na cria. E as videntes? O que dizer das videntes? Mais tarde veremos o caso de Macabéa, coitada, pobre, nordestina, iludida e maltratada de quase todas as formas possíveis que sua vida ingrata lhe concedeu. Mais tarde... Agora, melhor não dar atenção às videntes, principalmente as que cobram para proferir suas visões. Elas sempre dizem coisas que estamos cansados de saber. Talvez elas realmente busquem essas coisas no fundo de nossos olhos e as digam com aquela teatralidade macabra e sedutora. Porém, é mais necessário que nós mesmos aprendamos a buscar essas respostas dentro de nós, que nós aprendamos a fazer perguntas e que nos conformemos com o fato de que algumas não têm mesmo respostas – as perguntas mais importantes – e que outras respostas somente o tempo dará. É essencial que saibamos ler nossas próprias mãos para darmos nossos próprios passos. De qualquer forma, se dermos créditos aos místicos capitalistas, que têm preço para revelar suas profecias, é bom não esquecer de pagá-los. Todo domingo chove. A meteorologia sempre a errar. Todo domingo chove. E quem não tem guarda chuva se molha inteiro. A água a entrar pelos sapatos furados de solas muito gastas, ao ponto de sentir a dureza do chão como se os pés estivessem descalços. As calçadas escorregadias a propiciar tombos homéricos. “Mas se a chuva é de Nosso Senhor Jesus Cristo é bem vinda. Benditos sejam Seus desejos tanto áridos quanto úmidos.”
III “Pra que semear quando o solo não é fértil.”
Texto I . matheus só, para meu filho Vinicius Texto II . matheus só com citação de Hail to the Thief do Radiohead Texto III . pergunta sem resposta proposta no filme Imagem.Ladri di Biciclette, de Vittorio de Sica, Itália, l948

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meu primeiro amor

Muita gente já deve ter conferido este filme fofo e triste que passa exaustivamente na sessão da tarde. O que muita gente não deve ter ouvido é a excelente trilha sonora - que eu tenho em vinil! Além do hit (que já era hit antes do filme) My Girl com os Temptations, o disco ainda tem Spiral Starecase, Sly & The Family Stone, The Fifth Dimension, Manfred Mann, Todd Rundgren, The Rascals, Credence Clearwater Revival, Harold Melvin & The Blue Notes, The Flamingos, Chicago e aquele tema instrumental lindo que é tão relaxante quanto passear de bicicleta num dia ensolarado com aquele casal jovem e simpático. Compensa muito.

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