ladrões de bicicleta

II
Enfrentar as filas imensas da concorrência. Avesso aos azares dessa vida devastada por uma batalha vã – toda a guerra é vã. Quando a Grande Guerra termina as pequenas guerras continuam: juros e mais juros... Taxas abusivas nas costas de quem não tem quase nada e vai barganhando o pouco que tem em troca do estritamente necessário: um instrumento de trabalho.
E se este instrumento de trabalho for furtado no primeiro dia de admissão? O que resta ao infeliz do trabalhador? Correr atrás do prejuízo. Fazer a denúncia aos polícias não vale de nada. Num tempo de mais miseráveis do que empregados facilmente surgem ladrões. São tantos roubos, mais roubos até do que aquisições. E tamanha burocracia... As subvenções não servem de nada para quem não tem algo para oferecer. Sabe como é: uma propinazinha...
Procurar então por conta própria. O sonho desmontado. Todas as peças parecem iguais umas as outras. Mas havia um código que particularizava as peças – mas o código foi transformado ou raspado – subvertido.
Olhos inocentes já com fundas olheiras. Meu filho não se lembra da guerra, a não ser por parcos flashbacks do terror que os adultos sentiram e do barulho (que numa guerra é onipresente), como quem tem um pesadelo e depois o esquece – mas sabe que teve o pesadelo. Mas o bambino pode ver as ruínas. Ainda é pequeno mas já experimenta essa indecisão desesperada de tempos difíceis: ninguém entende nada direito, tão injustos e absurdos os fatos se apresentam.
Antes tudo era mais bonito e tinha mais cor. Agora são sobras e cinzas, sombras cinza que os que conseguiram sobreviver absorvem – gratos, até, pois é a única coisa que lhes resta.
E para quê uma guerra? Para quê? Por dinheiro? Por poder? Para que uma Nação triunfe sobre a outra? Não. Nada disso. Uma guerra é para os poderosos se divertirem com a desgraça do proletariado como um moleque que mal saiu das fraldas se diverte jogando água ou tocando fogo num formigueiro.
E se o ladrão aparecer. “Cumprimentem o ladrão. Cumprimentem o ladrão. Mas eu não. Mas eu não.” E se o ladrão for mais que um ladrão – se não passar de mais um pobre coitado que passou por tudo aquilo pelo qual você agora está passando e cansou-se de dar com a cara na parede, de lhe fecharem a porta na cara, de dar murro em ponta de faca... e passou para o outro lado: a margem, o marginal.
O que fazer então? Perdoar o ladrão? Tornar-se um ladrão? Roubar, mas não pelo prazer de roubar como pregava Jean Genet, mas por pura falta de outra opção, por necessidade. Ou insistir na honestidade para continuar levando surra e ser acusado de calúnia?
Um pobre desgraçado a mais que vai por estes caminhos tortuosos. Enfrentando o perigo constante de render-se e afogar-se. Mas não. Nadar. Nadar. Afinal, é preciso pensar na cria.
E as videntes? O que dizer das videntes? Mais tarde veremos o caso de Macabéa, coitada, pobre, nordestina, iludida e maltratada de quase todas as formas possíveis que sua vida ingrata lhe concedeu. Mais tarde... Agora, melhor não dar atenção às videntes, principalmente as que cobram para proferir suas visões. Elas sempre dizem coisas que estamos cansados de saber. Talvez elas realmente busquem essas coisas no fundo de nossos olhos e as digam com aquela teatralidade macabra e sedutora. Porém, é mais necessário que nós mesmos aprendamos a buscar essas respostas dentro de nós, que nós aprendamos a fazer perguntas e que nos conformemos com o fato de que algumas não têm mesmo respostas – as perguntas mais importantes – e que outras respostas somente o tempo dará. É essencial que saibamos ler nossas próprias mãos para darmos nossos próprios passos. De qualquer forma, se dermos créditos aos místicos capitalistas, que têm preço para revelar suas profecias, é bom não esquecer de pagá-los.
Todo domingo chove. A meteorologia sempre a errar. Todo domingo chove. E quem não tem guarda chuva se molha inteiro. A água a entrar pelos sapatos furados de solas muito gastas, ao ponto de sentir a dureza do chão como se os pés estivessem descalços. As calçadas escorregadias a propiciar tombos homéricos. “Mas se a chuva é de Nosso Senhor Jesus Cristo é bem vinda. Benditos sejam Seus desejos tanto áridos quanto úmidos.”
III
“Pra que semear quando o solo não é fértil.”
Texto I . matheus só, para meu filho Vinicius
Texto II . matheus só com citação de Hail to the Thief do Radiohead
Texto III . pergunta sem resposta proposta no filme
Imagem.Ladri di Biciclette, de Vittorio de Sica, Itália, l948
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