"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

23.12.10

Feliz Natal




Enquanto as crianças se divertiam com seus presentes recebidos, os adultos sentavam-se a mesa farta para cear. A última a tomar seu posto, à cabeceira, foi a sábia matriarca, de oitenta e oito anos. Com o ar cansado e sereno de quem sabe que já viveu mais do que viverá, pigarreou, fechou os olhos, colocou as palmas das mãos viradas para cima sobre a mesa e começou a fazer sua longa oração de Natal, que aumentava ainda mais a fome dos membros da família, mas que nenhum deles tinha coragem de interromper.
Mas, naquela noite, outra coisa a interromperia. Junto à oitava das doze badaladas do grande relógio de parede, a campainha soou. A governanta, que também estava sentada à mesa, pois já fazia parte da família, foi atender. Um minuto depois retornava:
- É um menino de rua. Pede comida. Posso preparar um prato com sobras pra ele...
- Nada de sobras – disse a matriarca, com ar decidido. – Faça com que ele entre e sente-se conosco à mesa.
- Mas mamãe... Como assim() É um... Um pivete! – Era a filha mais velha desconfiando de que a mãe estava ficando senil.
- Querida Nancy, percebo agora que de nada adiantou as centenas de vezes que lhe contei a história de uma família que recebia a visita de um mendigo que lhes pedia um pedaço de pão e que, após veemente recusa da mesma, se revelava o filho de Deus disfarçado em homem comum, da mesma forma que acontece desde a primeira vez. Deus está em mim, em todos desta mesa e também nos que estão fora dela. Deus está aonde houver vida. Vá buscá-lo! – Disse a generosa senhora à governanta, que não ousou desobedecer.
Então, o menino foi convidado pela matriarca a sentar-se à mesa, ao lado de seus filhos, netos, bisnetos e amigos, perplexos. Para ele, a deliciosa comida que lhe foi servida e aquele abrigo feliz de calor simbolizaram o primeiro Natal de verdade de sua existência. Mas para todo o resto do clã, incluindo as crianças e os criados, foi o menino quem simbolizou o renascimento do Cristo. Houve outros.

texto . Uma Lenda Contemporânea, de Matheus Matheus
imagem . Feliz Natal, de Selton Mello, Brasil, 2008

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Buscar Deus??

...

ah, sim.. falava do menino...

12:00 PM

 

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