"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

23.9.08

Morangos Silvestres

Então ele ia ser homenageado. Longa viagem até o local onde receberia os aparentes frutos do que plantara. Alguns apenas. Muitas coisas tinha plantado que não fertilizaram. Ou fertilizaram ssem ele saber, sem que tivesse paciência, tempo ou os dois para esperar a demorada germinação. O que importava realmente a ele agora era o que tinha sobrado. Doces lembranças do portifólio agridoce de sua memória. Também havia as amargas, as salgadas agrestes, as dúbias e até algumas sem gosto. As sem gosto, no entanto, iam se apagando aos poucos, podendo facilmente serem resumidas numa linha de poucas palavras. Ao contrário do que alguns tinham pensado sobre sua velhice, sua primavera mais bonita seria agora, com seus escassos cabelos grisalhos, com seus dentes amarelados pelo tempo, com todo o calor do verão, a melancolia do outono e a luxúria do inverno deixados para trás - "morangos mofados", "o passado nunca mais". Ficaram alguns filmes em sua cabeça que não tinham mais tanta importância. Não se apagavam facilmente mas ele insistia em continuar vivendo os presentes do presente. Durante a viagem, dentro do carro, via paisagens que o faziam lembra-se de coisas que há muito tinha vivido - ou apenas imaginara que vivera? Seus desejos não-realizados eram meros reflexos dos acontecimentos? Ou vice-versa? "Se eu pudesse voltar atrás faria diferente? Não faria? Faria mais? Se eu tivesse feito algo diferente no início, quando havia tempo..." Ainda havia tempo, ainda estava vivo. O que lhe restava? Alguns minutos? Algumas horas? Dias? Meses? Anos? Até quando ele precisasse? Se estenderiam, infinitamente. Por ser velho era natural que vivesse no passado? Ou deveria se esforçar para viver no presente e se adaptar? Não! Adaptar-se nunca! Desde o início aquela rebeldia que, com o passar do tempo, ia-se convertendo em amargura, postura ranzinza, reclusa. Adaptar-se nunca! Nunca! O tempo, no entanto, não retrocedia, era impagável. Um juiz. Um tribunal. E quem seria o réu? Ele? Ele, o réu, o juiz, o tribunal, tudo. Tudo que já estava impresso no passado e que não poderia ser apagado. Tinha perdido muito tempo tentando resolver as questões triviais das outras pessoas, tentando consertá-las a ferro e fogo para que as coisas fossem do modo que achava que fosse correto. Para quê? Para nada. Muito melhor se tivesse buscado mais prazer em sua vida. Ninguém ia mudar por sua causa. Pelo menos, não à força bruta. E, paradoxalmente, o menor gesto seu interferia em tudo no mundo. O menor gesto seu, ainda que solitário e ingênuo, era político e ia repercutir, ia ecoar por séculos e séculos - anos-luz ao infinito. Não, não adiantava se arrepender de nada. Não adiantaria de nada tentar consertar nada. Tudo era muito inevitável, irremediável. Tudo em preto & branco, preto no branco - nu. A vida era como estar construindo um parangolé gigantesco em torno de seu corpo. Vestindo-se com ele, desnudando-se sem querer ou por querer, vez por outra espetando-se num alfinete mal colocado. A vida era inventada por cada um. Mas a vida era pública. Era inevitável que sua vida não era inventada apenas por ele mesmo. Esta invenção era a junção de inúmeras microinvenções. Se ele era um líder? Um formador de opinião? Nunca lhe agradaram títulos. Sobretudo os títulos que eram atribuídos a ele. Também não gostava de eventos em torno de sua pessoa. Ou de sua obra. Ficava sem graça, suava muito, se sentia muito grande ou muito pequeno dentro de si, tremia incontrolavelmente. Em parte por causa da bebida, que consumia abundantemente e afetava sua coordenação motora. Em parte porque ficava tenso e constrangido com todo aquele circo armado em seu redor. Às vezes se obrigava a comparecer, para divulgar a sua obra... E a sua obra? O que restaria de sua obra depois que ele morresse? Sua vida toda tinha sido um esforço enorme para divulgar o que produzia... Mas, e depois que morresse? Sua obra teria força para continuar sozinha? Se tivesse, ela seria verdadeira, teria valido a pena. Se não... morreria com ele. Mas era cíclico, era natural. Nascer, crescer, reproduzir-se, envelhecer, morrer. Sua obra era sua reprodução. Às vezes gélida como o gelo, às vezes quente como uma cópula frenética. Nunca morna, nunca apática.Morrer seria natural. No entanto, sua obra certamente duraria mais que ele. No mínimo, alguns anos subsequentes a sua partida. Pelo menos um pouco mais. Esta homenagem era um reconhecimento de sua grandeza humana. Mas será que as pessoas que estariam ali para homenageá-lo tinham absorvido como um todo a amplitude de sua obra? Ele era uma pessoa como qualquer outra. Cheio das escatologias, cheio das frustrações. Tinha um nome, números que o identificavam. Números de controle. Tinha medos, amores, desejos. Tinha sentimentos, pensamentos e um dom que permitia a ele entregá-los de forma maquiada e belíssima ao público interessado. Mas o público? Estaria mesmo interessado ou fingiria estar, apenas para obter o status de parecer interessado. Ele era visceral. Não gostava do traje a rigor. Gostava era da nudez e da baba que ela produzia por consequência óbvia... Gostava era de imaginar, com olhos sedentos de raio x, o que havia por debaixo daqueles smokings e daqueles vestidos - libido, provavelmente. Ou frigidez & impotência - que tristeza... Por isso gostava tanto do ato de ir ao cinema. De certa forma, todos que estivessem no público, estavam nus, poderiam ser pegos de surpresa facilmente, estavam vulneráveis, por mais críticos e por mais duros que fossem, ou que parecessem ser. Por isso gostava de cinema. Lá dentro podia-se assistir a orgias e a funerais, ao crime hediondo e a fuga irreversível do assassino - o espectador compactua passivamente com os crimes da tela. Dentro de salas escuras, assistira também a partos, a nascimentos de sentimentos extremamente nobres, de outros nem tanto. Lá, exorcizava seus medos, encarando-os de frente. Lá, voyeur elegante saindo à francesa, aprendia novas maneiras de amar, de odiar e de se reconciliar com o mundo. Por isso, sim, e por outras tantas coisas, gostava de cinema. Ele fazia cinema em cada cena de sua vida. Moça rolando na grama, eternamente. Moça no balanço, vertiginosa. Moça fumando, elegantemente atraente. Moça rodando a saia, festiva. Moça colhendo frutas frescas e flores perfumadas e as colocando num cesto, convite. E tantas outras moças, em outras cenas. Sua infância simples no campo: ele, rodeado de pessoas simples, vivendo de forma simples e, ainda assim, extremamente complexo e incompreendido. Mas feliz? Aquilo era uma forma sincera de felicidade. Ser feliz sempre tinha sido um sonho meio utópico. Procurou isto durante toda a sua vida. No afeto com açúcar, no afeto sem açúcar. Em todas as suas garantias de habilidades, em todos os seus diplomas e certificados de conclusão. Em tudo aquilo a que se lançara com zelo. E então, agora, ia ser homenageado. O que mais poderia querer? O que mais poderia ambicionar? Queria. Ambicionava. Tudo que ainda não tinha sido visto e vivido. Mas não podia? Podia. Estava velho, o que lhe restava era apenas esta homenagem, apenas as lembranças, até a morte? Não. Pediu que parassem o carro. Desceu e foi dar uma volta, resgatando sua mente daquele turbilhão de reflexões que iam se acumulando naquela arriscada brainstorm. Respírou tudo o que estava ao seu redor. Natureza quase intocada. Jovem como ele um dia tinha sido. E , respirando aquele ar puro que quase lhe cortava os pulmões de tão fresco, se sentiu um pouco jovem também... ... como aquele leve farvalhar do vento nas folhas das árvores. ... como os animais que habitam os verdes campos e que, mesmo não se mostrando aos humanos, manifestam sua presença nos sons que emitem, nas pegadas que deixam e na impressão de termos visto um vulto - são ágeis para não serem capturados. ... como a água que fertiliza a terra e mata a sede e banha quem precisa ser banhado. Sentiu-se parte daquilo tudo. Esta leveza, que era tão rara em sua vida, o harmonizou temporariamente. Entrou novamente no carro, renovado. Rejuvenescido? Talvez. O que o esperaria naquela homenagem? Não é de bom tom contar o final do filme. Continuou seguindo adiante, percorrendo mais um pequeno trecho de sua longa estrada. Aquela estrada a qual ele não sabia nem quando e nem onde iria terminar. À beira do caminho, ele notou que haviam frutos frescos, rubros, maduros, e flores quase se transmutando em mais frutos. Com a velocidade do veículo, diante de sua visão as flores e os frutos iam se confundido ao ponto de parecerem uma enorme linha de cor e viço. Era primavera em sua vida, no mundo lá fora e, o mais importante, em seu coração.
imagem . Smultronstället - Wild Strawberries, de Ingmar Bergman, Suécia, 1957 texto em construção . Matheus Matheus